domingo, 4 de outubro de 2009

Mais uma vez, genial :)

A importância política do voto nulo
Mais uma vez, o principal aspecto das eleições legislativas passa sem o comentário dos analistas políticos. Como é possível que a generalidade dos comentadores passe a noite eleitoral a dizer banalidades sobre os votos nos grandes partidos e não diga uma única banalidade sobre os votos brancos e, sobretudo, os votos nulos? Os eleitores mais empenhados e que levam mais a sério o seu voto voltaram a ser ignorados em todos os comentários. No entanto, e como é evidente, não há nenhum eleitor mais abnegado do que aquele que deposita na urna um voto nulo. Trata-se de um cidadão que se desloca à secção de voto com o objectivo de inutilizar o seu boletim, muitas vezes escrevendo nele uma frase indecente, ou espirituosa, ou ambas - uma obra que será contemplada apenas pelos dois ou três desgraçados que despejam a urna e fazem a contagem dos votos. Normalmente, a mensagem escrita no boletim é dirigida a um candidato, ou a vários, ou a todos - no entanto, na melhor das hipóteses fará corar apenas a presidente da mesa eleitoral. Há nisto tanto de poético, de quixotesco e de belo (e é tão curioso que toda essa beleza seja produzida, na maior parte das vezes, pelo desenho de partes seleccionadas do corpo humano) que me dá vontade de chorar. Mais ainda do que os próprios resultados eleitorais. Os votos brancos caíram 4544 votos, enquanto os nulos subiram de 65 515 votos para 74 274, o que significa um importante aumento de 8759 votos. Sem fazer campanha, sem dinheiro do Estado para propaganda, sem tempos de antena, a obscenidade democrática vai trilhando o seu caminho, subindo paulatinamente, sufrágio após sufrágio. O mais triste, e até injusto, é o facto de este tipo de voto continuar a ser designado por nulo. Quem tem a suprema lata antidemocrática de dizer que um voto com um dito ou um desenho indecoroso é menos válido do que uma cruzinha num dos partidos listados no boletim? Quando é que a Comissão Nacional de Eleições percebe que este sistema de denominação discrimina precisamente os votos mais livres, mais requintados, mais artísticos? Nulo, um pirete? Válida, uma cruzinha? Não faz sentido. O pirete agregador, porque desenhado democraticamente sobre todos os partidos, com a sua pujança fecundadora, é um voto que promete futuro. A cruzinha, encarcerada num só quadrado, é exclusiva, porquanto elege um e repele todos os outros. Uma cruz é uma cruz. Um pirete tem diversos matizes, tamanhos, guarnições. Há, evidentemente, muito mais num pirete que numa triste cruz.
Ricardo Araújo Pereira, in VISÃO 1 de Out de 2009

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